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O Judiciário se renova em meio à pandemia


A pandemia de coronavírus não atinge apenas as áreas de saúde e economia e não movimenta apenas os Poderes Legislativo e Executivo. Seus efeitos provocam tensão e muitas decisões também no meio jurídico. Advogados, procuradores, desembargadores, ministros de tribunais superiores já avaliam e tomam decisões em casos que envolvem obrigações previstas em contratos privados, como pagamento de aluguel de imóveis, distrato de compra e venda de ativos, fornecimento de insumos e serviços, entrega de obras. O vírus também tende a provocar revisão de sentenças em casos de recuperação judicial e abre a possibilidade de empresas conquistarem mais tempo para pagar impostos e outras obrigações fiscais.

A pandemia é um “evento fortuito” ou de “força maior”, é o argumento jurídico a embasar boa parte dos pedidos. Foi o que justificou um grupo de concessionárias de carros importados (BMW, Land Rover, Volvo, Jeep e Harley-Davidson) que ganhou na Justiça o direito de suspender o pagamento de aluguéis por quatro meses e repor o valor devido nos 12 meses seguintes, sem mora.

No despacho, a juíza Flávia Poyares Miranda, do Tribunal de Justiça de São Paulo, considerou que "a pandemia mundial acarretou a paralisação de diversas atividades, causando profundo impacto na vida das pessoas". E classificou a petição como um caso de "força maior", o que justifica a intervenção do Judiciário de acordo com o seu parecer.

Evento fortuito é um acontecimento promovido por ato humano, mas de forma imprevisível e inevitável. A força maior é motivada por eventos além do alcance humano, mas também imprevisível e inevitável. Na verdade, ainda não há uma jurisprudência consolidada para definir em qual categoria o Covid-19 se enquadra, mas a crise abriu a brecha legal e alimentou a discussão em torno do tema.

Sem recorrer à força maior, mas lembrando a decretação do estado de calamidade pública no país e no Rio de Janeiro, a juíza Andrea de Araújo Peixoto concedeu liminar para que uma conhecida rede de lojas fluminense deixasse de recolher tributos federais por três meses cobrados sobre produtos importados. Salienta que a “imprevisibilidade do período de manutenção das restrições sanitárias” e a “falta de consenso político” em torno do tema reforçam a dilatação do prazo de pagamento e deixam em aberto a possiblidade de sua prorrogação. Na mesma linha, a juíza Maria da Penha Nobre Mauro decidiu impedir a Light de cortar a energia dos consumidores até junho.

Certo é que a pandemia atinge contratos e afeta relações comerciais, fiscais e judiciais, com maior ou menor impacto, dependendo de cada caso. Se a negociação entre as partes envolvidas falhar – e este é o primeiro passo – a Justiça terá, certamente, de arbitrar circunstâncias, alcance e casos em que os argumentos de força maior, evento fortuito e calamidade pública se enquadram.

No meio jurídico, o artigo 478 do Código Civil também é bastante citado. Afirma que "se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato". Ao recorrer ao artigo, contudo, o peticionário tem a obrigação de detalhar como a crise afetou seus negócios, provar como impede o cumprimento do contrato e a suspensão de suas obrigações.

O mesmo vale para as empresas que já estão em recuperação judicial. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou na terça-feira, 31, uma recomendação que abre a possibilidade de apresentarem um novo plano de pagamento aos credores por conta dos reflexos do coronavírus. O documento orienta os juízes a permitirem a revisão desde que a empresa estivesse seguindo o cronograma de acerto dos débitos antes da decretação de estado de calamidade (no dia 20 de março).

O Congresso também deve seguir nessa direção. Relator do projeto de lei que atualiza as regras de recuperação judicial e falência, o deputado Hugo Leal (PSD-RJ) já tem pronto projeto de lei com medidas emergenciais válidas até dezembro deste ano, tanto para evitar que empresas entrem em recuperação judicial devido à crise do Covid-19 como para auxiliar as que já estão passando por este processo. Uma das ideias é permitir a apresentação de um novo plano que inclua as dívidas feitas depois da entrada do pedido de recuperação na Justiça, possibilidade que a lei não permite hoje.

Outra proposta é preventiva. Para evitar que empresas atingidas pela pandemia entrem com pedidos de recuperação, teriam a possibilidade de suspender as dívidas por um período de três meses de forma a ganhar tempo para negociar com os credores sem serem executadas na Justiça. Se o prazo não for suficiente e a empresa comprovar que o faturamento caiu 30% ou mais em comparação ao mesmo trimestre do ano passado, poderá pedir a extensão do prazo por mais dois meses, abrindo espaço para uma negociação coletiva.

Toda as decisões judiciais já anunciadas até agora, as recomendações do Conselho Nacional de Justiça e as propostas que vem sendo analisadas pelo grupo formado pelo deputado Hugo Leal no caso da recuperação judicial estão no caminho certo. A pandemia é um desafio também do ponto de vista jurídico e exige de cada um dos envolvidos nos processos uma nova leitura das leis. Diante do desafio que teremos depois, de preservar empresas e empregos e retomar a atividade econômica, o Judiciário está mais do que preparado para cumprir seu papel.

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